O Corvo

1 de abril de 2011 at 6:28 PM (POST) ()

O Corvo

(de Edgar Allan Poe traduzido por Machado de Assis.)

Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
“É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais.”

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.
E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto, e: “Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais.”

Minh’alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: “Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso
Batestes, não fui logo, prestemente,
Certificar-me que aí estais.”
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro coa alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
“Seguramente, há na janela
Alguma cousa que sussurra. Abramos,
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso,
Obra do vento e nada mais.”

Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: “O tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?”
E o corvo disse: “Nunca mais”.

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: “Nunca mais”.

No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: “Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora.”
E o corvo disse: “Nunca mais!”

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
“Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: “Nunca mais”.

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: “Nunca mais”.

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranqüilo a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: “Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora.”
E o corvo disse: “Nunca mais”.

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?”
E o corvo disse: “Nunca mais”.

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o corvo disse: “Nunca mais.”

“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua.”
E o corvo disse: “Nunca mais”.

E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!

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A Gorda do Tiki Bar

27 de outubro de 2010 at 11:19 PM (POST) (, , )

Dalton Trevisan foi me apresentado por um amigo gordinho e baixinho com cara de tarado e lábia de psicopata que leva qualquer garotinha inocente para o meio da mata fazer coisas que elas não deveriam fazer até completarem 18 anos. Ele veio até mim e me entregou o livro e disse: “Leia em casa, deitado na cama, ouvindo Cazuza”. Achei estranho, e decidi não seguir o conselho dele. O livro do Dalton Trevisan era de contos com o nome de “A Gorda do Tiki Bar” e o primeiro conto do livro era:

“A Gorda do Tiki Bar”

Cambaleou na luz negra do inferninho: quanto mais escuro, mais lindas rainhas. Firmou o cotovelo no balcão:
– Quedê a gorda?
Ao seu lado, rindo, ocupando todo o balcão,quem se debruçava, ofuscante na blusa branca de lã?
– Vamos lá no cantinho.
Em busca de manjares delicados, ambrosias achadas e perdidas. Fim de noite, sobrou a última das gordas, prato fundo de caldo de feijão.
– Tua língua é fálica.
– O que, bem?
– Me dá tua língua.
Transbordava sobre ele, o tatuzinho cheio de patinhas enrolando-se na bola nua de carne,mais uma bola e outra bola.
– Credo, bem. Mais tarado que o meu marido.
E ria, exibindo caninos e pré-molares.
– Que maravilha. Tem todos os dentes!
Assim que falou se arrependeu, sempre o risco da ponte ou dentadura.
– Fale. Gema. Suspire.
Não sabia, a desgracida. Fazia a pergunta, ele mesmo dava a resposta. Cada vez mais excitado.
– Te queimo na brasa do cigarro.
– Cuidado, o botão.
– Quero aqui. Agora.
Assanhadíssima, menos que ele.
– Aqui não. Aqui, não.
– Quero já.
– Vamos ao hotel.
– Muito longe.
– Tia Hilda está olhando.
– Só se me der tudo.
– Eu dou. Agora se comporte, benzinho.
Enquanto assinava o cheque, ela remexia na famosa bolsa de franjas.
– Não quer táxi?
– É pertinho. Vamos de mão dada.
Insegura com as luzes, coitadinha. Mão dada cruzaram a praça. Cuidado de não a olhar, podia desistir no meio do caminho. De relance o grande ramalhete de petúnias rebolantes na calça vermelhosa.
No saguão feérico o porteiro olhou para a gorda:
– Sinto muito, doutor. Está lotado.
– Mesmo a suíte nupcial?
Melhor não discutir. Ela o puxava pela mãozinha trêmula.
– Vamos, querido.
No fim do corredor tenebroso o chinês cochilava no sofá de couro rasgado.
– O senhor deseja?
– O melhor apartamento.
Sorriso inescrutável, o chinês olhou para a gorda:
– Tem não.
Laurinho estendeu uma nota dobrada:
– Aqui a diária.
– Terceiro andar, doutor.
Atrás das portas, algumas entreabertas, roncos de caixeiros-viajantes ou gemidos de amantes solitários? No corredor a fumaça dos cachimbos de ópio? Resfolegante, a gorda arrastava-se no seu encalço, rangendo o corrimão, abalando os degraus, estremecendo as paredes. O quartinho sinistro, colcha enrugada na cama de casal. Mão no peito, a gorda penduroulhe o paletó no cabide de arame. Olho apertado de chim frestava no buraco da parede?
Entrou no banheiro: a gorda toda nua debaixo do chuveiro. Só dobras, pregas, refolhos, melões em cima e mamelões embaixo. Ó pura contradição, volúpia de três pálpebras para um só olho, êxtase de tantas pétalas num só botão de rosa.
– Não me olhe, bem.
– Gordo também sou.
– Como é grande, Laurinho.
Lavou-se ali na pia e deitou-se na cama, arrepiado com os lençóis encardidos.
– Ó mãe do céu! Será que não pega?
Nu, de meia preta e relógio de pulso. Ela surgiu balouçante na pontinha do pé, encheu todo o quarto. Se não a esperasse, teria gritado de susto.
– Quero mil beijos de paixão.
Reclinou-se no travesseiro, mãos na nuca, para ver tudo. O cabelo fosco de sabugo mal apanhado numa fita azul. Ela titilou a orelha. Brincalhona, despiu-lhe a meia, fez cócega no pé.
– Pare com isso.
Ainda bem o cabelo preso, não carecia afastá-lo com as mãos.
– Tire os dentes. Sem os dentes.
A cabecinha rugosa do velho São Jorge. Eis que se rasgam as nuvens do céu. Surge o feroz dragão de bocarra chamejante.
– Corta essa tosse.
Ela rolou para o lado estralando o colchão.
– Me alcance a cinta.
– De cinta, não.
Não era mais tarado que o marido?
– Me ajude – ele pediu.
Náufrago sumido no remoinho de brancuras deliciosas, afundava até o nariz nos vagalhões de espuma e geléia de mocotó.
– Assim não dá.
Tornaram às posições anteriores. Daí ela ficou de joelho.
– Está tinindo, bem.
– Veja como é quentinho.
– Bem devagar. Senão dói.
– Quem roubou o toicinho daqui?
– Foi o gato.
– Quedê o gato?
– O fogo queimou.
Ela se engasgava, outra vez tudo de novo.
– Quedê a água?
– O boi bebeu.
A vez de se enganar, ele, agulha sem rumo nos sete mares encapelados da rosa-dos-ventos.
– Galope, não. Fique no trote.
Corcoveava e bufava igualzinha à mula Brinquinha, que fora o seu primeiro grande amor.

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